Excertos de " Pó de Ser " 

"Há neste livro uma alma que pede para ser lida."

    Pedro Chagas Freitas 


Monstro sem cara

Este monstro não tem cara, ainda menos tem boca. Mas é voraz, sedento e mesmo sem boca munida de dentes consegue alimentar-se tão avidamente que nos deixa sem tempo.

A escolha para o seu festim torna-se fácil, pois o tamanho do seu repasto é interminável, morre um e nasce outro. E sem qualquer critério, colhe um e mais outro.

O monstro sem cara funciona como um buraco negro, não no imenso Espaço, mas aqui na pequena Terra, suga de forma exaustiva a energia, o calor, a luz dos seres vivos. Retira de forma silenciosa e irreversível: tudo!
Alimenta-se do que brilha, do que sente, do que

tem vida, do que tem amor. Absorve lugubremente a felicidade e vomita a dor.

Começa por digerir, encantado, o medo dos incautos, que agarra indiscriminada e, facilmente, entra como quer nas suas entranhas e de uma forma eficaz e precisa; à semelhança da aranha, que injeta o seu veneno nos insetos e depois, calmamente, fica escondida num

canto da sua pegajosa teia, espera e agarra mortalmente com as duas quelíceras e zás… aguarda pelo efeito e depois aos poucos suga uma sopa de órgãos liquefeitos, produzida pelo seu eficaz veneno.

O monstro sem cara faz o mesmo.
Depois da tortura errática do medo, da dor, da agonizante espera  por parcas melhoras, vem a provação causada pelo uso dos químicos. 

Chega a altura da perda de pedaços que nos pertenciam desde o  dia em que berramos pela primeira vez a este mundo e também com  a mesma quantidade de cabelo, desse mesmo dia.

De repente, os incautos sentem-se melhor, a esperança invade-os, sentem a tal euforia da morte. Mal sabem eles que é apenas  o monstro sem cara a deliciar-se de forma perversa à sua custa. A atrasar o fim inevitável e recorrendo de novo a uma analogia: como um casal de amantes que retarda o orgasmo para gozar mais um 

pouco e, ainda mais, o prazer que sentem.

O monstro sem cara vai gozando de forma vil e reles com a agonia dos que à custa dos tais químicos enganadores sentem melhoras, quando novamente tornam a pensar no dia seguinte. 

Mas quando menos esperam e quando o julgavam satisfeito ou derrotado, ele agarra mortalmente com as suas mãos e fica com mais um e mais outro corpo mutilado, de tom amarelado e vazio. 

Dos incautos resta apenas um invólucro frio, definhado, sugado de tudo o que a vida lhe dera quando nasceu: pele, órgãos, cabelo e alma. A alma, essa foi o aperitivo, foi o primeiro sabor que, deliciado, sentiu o monstro sem cara, esse monstro nunca satisfeito. 

Ele não tem idade, não tem cara, não tem boca, não tem fim, mas tem nome.

Eu não lhe vou dar o prazer de escrever o seu nome. 

Provavelmente por medo, um medo agonizante e uma ansiedade funesta, de que ele repare em mim, e que me faça o que fez a Alda. 

Ela, a mulher que me gerou, criou e amou…
O nome dele eu não digo, não sei como vocês o tratam. Eu quando me refiro a este monstro sem cara é sempre e só de uma maneira: 

Que puta de doença!                        



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