Antologia III


«Três Quartos de Um Amor»


Desta vez a Chiado Books pediu-me uma carta de amor.

Eu já escrevi muitas, claro, mas há muitos anos atrás, quando era uma ingénua romântica que acreditava na magia da paixão. Tenho sessenta anos, por favor! Não pensem que sou uma seca e azeda mulher mal amada, pelo contrário, vivi demasiadas paixões e fui muito e intensamente amada, amei sem limites.
Para mim não existia vida sem paixão, só ela sabia e conseguia bombear o sangue vermelho de paixão para o meu esfomeado coração.
E assim vivi até tarde e durante muito tempo, agora sei demasiado tempo.
Sim, a paixão é "O" sentimento, um sentimento sublime, que nos cega, amarra, ilude, enlouquece, perdemos a sensatez a lucidez, tudo isto amando intensamente, que é a minha maneira de estar na vida, sempre e tudo intensamente, logo se torna num desprezível sentimento.
Ficamos manietados, sem vontade própria e fazemos coisas das quais mais tarde nos arrependemos...
Pois eu gosto deste novo eu, segura, sensata, lúcida não manietada! Por isso, fiquei assustada, uma carta de amor?
Pensei durante um dia e na manhã seguinte escrevi uma carta. Não, esta ainda não vou mostrar, porque ainda não foi publicada mas, sim, foi aprovada! ;)
Obrigada pela oportunidade Chiado Books ♡


Celebrou-se hoje, dia 18 de Fevereiro às 15.30h no Hotel Palácio Estoril, a apresentação de mais uma Antologia da Chiado Books,  desta vez uma colectânea de cartas de amor chamada "Três Quartos de um Amor". Tenho o privilégio de ser coautora desta obra. Obrigada Chiado Books! 

Para a minha avó 

Olá, vó

Ontem tive saudades suas. E hoje também.

Peguei naquele camiseiro branco debruado a azul-escuro, aquele com flor-de-lis bordadas no colarinho, lembra-se qual é, vó?

Sim, esse com os punhos também enfeitados de lis, que costumava usar com uma saia azul, ficava tão bonita!

Peguei nele, levei o ao rosto e ao sentir o seu cheiro, ao sentir aquele aroma a amor, ao sentir o aroma a lavanda, ao sentir o cheiro a sabonete, que saía das gavetas do seu quarto, no pechiché do lado direito da sua cama, cheiro que fica lacrado e marcado em toda a sua roupa, vó.

Esse cheiro arrebatador fez me sentir saudades, fez-me o coração triste, mas a alma engradecida porque é sinal de que ainda a tenho comigo, na minha vida.

Sim vó, eu sei perfeitamente que está sempre comigo, eu sei que me guia, eu sei que me ampara, mas, eu não consigo deixar de ficar triste de saudades.

Não vó por favor não chore, isso é para mim, a chorona. A avó já chorou o suficiente, já passou por algo insuperável, por uma perda que eu nunca passarei, porque nunca lhe dei um neto. Não se apoquente vó, eu nunca estou só. Eu tenho-a sempre junto a mim, lembre-se disso.

As memórias são amigas, essas sim, amigas confiáveis, não daquelas que ambas conhecemos e com as quais sofremos. Agora lembrei-me de uma expressão sua, vó; amiga é a minha barriga e até ela me dói, em miúda achava que era alguma frieza da sua parte, ao crescer, ao viver, ao aprender a viver e ao muito sofrer, então vi, com uma clareza sem tamanho e com uma monstruosa certeza, a lúcida verdade das suas palavras, das suas sábias palavras.

É a sua sapiência, a sua lucidez, a sua sensatez que gostava de ter recebido como herança, esta inefável admiração que sinto por si, vó, chega a tocar um sentimento desprezível que se chama inveja.

Ai, como eu gostava de ter herdado todos os seus dons pois teria sido mais fácil viver a minha vida, difícil.

São várias vezes ao dia, que eu levo o anelar esquerdo aos lábios, para beijar a aliança que me deu e que usou por setenta anos, que lhe deu o querido avô. Ao fazer esse gesto não sinto o frio do ouro, mas sinto a pele macia, morna e cheirosa d'avó.

O cheiro a lavanda e a sabonete, um odor que nunca senti em ninguém.

Único, perfeito só seu, vó.

Como eu gostava de sentir, só mais uma vez, o seu abraço com aroma a amor…


Madalena Gonçalves 

Avó Isaura
Avó Isaura